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Déogratias

CapaAutor: Jean-Philippe Stassen
Editora: Edições Asa (edição portuguesa); Dupuis

No prolífero mercado franco-belga as BDs de Stassen são uma agradável lufada de ar fresco. Ao denunciar diversas desigualdades sociais, e ao retratar a vida das minorias (Louis le Portugais), Stassen afirmou-se como um autor de excepção no campo dos quadradinhos. Em 1997 Stassen foi ao Ruanda fazer uma surpresa a alguém e o que era para ser apenas uma viagem transformou-se num projecto audacioso: um álbum sobre a tragédia do Ruanda, que na Primavera de 1994 matou mais de 500 000 Tutsis e Hutus moderados. O resultado foi o álbum Déogratias que em 2001 ganhou o prémio René Goscinny (melhor argumento) em Angoulême e o prémio France Info.
Com as roupas em farrapos, olhar esgazeado, Déogratias erra pelas ruas de Butare, Ruanda, em busca de cerveja que o faça esquecer que é um cão. Mas à noite, sem urwagwa (cerveja de banana), os seus pesadelos voltam a assombrá-lo… Antes do genocídio, o jovem Déogratias faz pequenas tarefas na missão Católica dirigida por dois padres belgas. Na missão vivem também Bénigne e Apollinaire, as filhas de Vedette, uma prostituta respeitável. Déogratias está apaixonado por Apollinaire, mestiça e supostamente filha de um dos padres, mas esta rejeita-o pois uma relação amorosa seria contrária aos ensinamentos da missão. No entanto, Bénigne é mais indulgente e acaba nos braços de Déogratias. Graças a um inteligente sistema de flash-backs vamos acompanhando Déogratias, e os que lhe são próximos, antes, e após, os terríveis acontecimentos. Assim acompanhamos as personagens no seu quotidiano e instalamo-nos confortavelmente nas suas vidas à espera do terrível acontecimento que transformou Déogratias num cão.
Embora o tema central do álbum seja inevitavelmente o genocídio são raras as cenas de violência que Stassen nos mostra. Ao relatar a história a dois tempos Stassen inteira-nos das alterações irremediáveis que a vida deste povo sofreu, e é isso que acaba por ser mais chocante para o leitor. O olhar corrosivo de Stassen não poupa ninguém, desde as forças colonizadoras que acentuam as divergências entre as diferentes etnias, até à rádio que incita o massacre dos Tutsis, todos têm a sua quota-parte de responsabilidade.
Stassen optou por abordar o genocídio através de uma história individual fazendo assim surgir a verdadeira História por trás deste álbum. Foi uma escolha certeira que lhe permitiu humanizar o drama e torná-lo mais perceptível. Ao escolher alguém perfeitamente banal, como Déogratias, Stassen sugere que o genocídio foi, em grande parte, realizado por pessoas comuns. Houve certamente extremistas que exaltaram os ânimos da população, e também quem resistisse, mas Déogratias não se enquadra em nenhuma destas categorias. Ele é o Ruandês comum que permitiu que o genocídio acontece no seio da sua comunidade, mas os remorsos nunca o vão abandonar…
Os desenhos de Stassen adequam-se perfeitamente com a narrativa. O traço simples, erroneamente ingénuo e a paleta, propositadamente limitada, de cores quentes, asfixiantes, são intrinsecamente africanos. Este estilo de desenho original é o complemento perfeito para o brilhante sistema narrativo a dois tempos utilizado por Stassen.
Gostei muito desta BD que tem uma componente social muito forte. É um óptimo relato de mais uma infeliz tragédia que mancha as páginas da nossa História e deveria ser lido por toda a gente. Stassen conseguiu ultrapassar de maneira hábil os limites que teimosamente tentam impor à nona arte e trouxe-nos mais uma daquelas BDs que são para dar a conhecer a toda a gente, até aquele vosso conhecido que só sabe gozar com os quadradinhos não terá nada a apontar a Déogratias. Se gostaram, e querem mais livros do Stassen, a Asa já publicou o seu último trabalho: Crianças.

Ferrão