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Strangehaven - Na Arcádia

Capa Strangehaven - Na ArcádiaAutor: Gary Spencer Millidge
Editora: Devir


Strangehaven começou a ser publicada em 1995 no formato de comic e em 10 anos foram publicados 18 números, o que dá a espantosa média de 1 a 2 comics lançados por ano. É o que acontece quando um autor talentoso vê o seu trabalho recusado pelas editoras e é obrigado a auto-publicar o seu trabalho. Como na maioria dos casos, o autor em questão não consegue viver dos rendimentos da 9ª arte e vê-se obrigado a trabalhar noutras áreas para subsistir, e quem sofre as consequências é a sua obra, publicada a passo de caracol. No entanto, também podemos argumentar que a rapidez com que são lançadas as BD das grandes corporações não é sinónimo de qualidade e que mais vale uma BD bem pensada mas que é publicada lentamente. E a julgar pelo British National Comic Award de 1997, e pelas inúmeras nomeações para outros prémios, Strangehaven é a prova que a qualidade impera sobre a rapidez. Este livro, que reúne os 3 primeiros números, inicia a nova ambiciosa colecção da Devir (Riscos) dedicada a BD mais alternativa e com arte a preto e branco.
Quem já viajou de carro por pequenas estradas do campo sabe quão fácil é ficar perdido no meio do nada, principalmente se for noite cerrada e começar a chover. É assim que começa a estranha história de Alex Hunter, cuja única orientação é uma indicação para Strangehaven, aldeia que ele nem consegue encontrar no mapa. Só que além de estar perdido ainda vai ter um acidente ao tentar não atropelar uma sinistra rapariga que aparece à frente do seu carro. Alex recupera os sentidos em Strangehaven, no consultório do médico, onde lhe dizem que não havia mais ninguém no local do acidente.
Apesar das estranhas circunstancias em que Alex chega à cidade, e da imagem recorrente de uma rapariga a andar debaixo de água, Strangehaven parece uma aldeia que possui um charme à parte e o próprio Alex vai se deixar encantar. Principalmente depois de passar um dia perdido, nas estradas circundantes, a tentar seguir viagem. Além disso, Janey, a assistente do médico, apaixonou-se por Alex e convence-o a instalar-se em Strangehaven como professor primário.
Entretanto, a vida continua em Strangehaven. A sociedade secreta da aldeia, uma espécie de maçonaria local, continua a reunir-se e tenta decidir o que fazer em relação ao estranho que acabou de chegar. Meg, um antigo xamã de uma tribo amazónica, inicia o jovem irmão de Janey nos mistérios da cultura das tribos amazónicas. E, Adam, um tipo de óculos escuros com ar de metaleiro que diz possuir visão raio-x e ser de outro planeta, continua a trabalhar num sofisticado aparelho para contactar o seu povo.
Gary Spencer Millidge não avança muitas respostas nesta altura da história, mas vê-se que está estabelecer excelentes bases para o desenvolvimento deste enredo cheio de personagens intrigantes. Habilmente planificados, estes três primeiros números avançam a um ritmo calmo, adequado ao cenário idílico de Strangehaven, o que permite ao leitor ter uma visão global da vida na aldeia. É impossível não comparar Strangehaven a uma novela, pois Millidge relata a vida dos aldeões através de uma série de pequenos episódios que se vão sobrepondo e onde a narrativa principal serve de foco. Mas não pensem que Strangehaven é um dramalhão brasileiro cheio de clichés, não é por isso que o comparo a uma novela... O maior feito de Strangehaven é o ambiente criado pelo autor, numa cidade aparentemente pacata surgem indícios bizarros e sobrenaturais que nos fazem ter a certeza que algo de muito estranho se está a passar sob o manto da aparente normalidade. Talvez por isso esta BD seja constantemente comparada a Twin Peaks
Quando folheei o livro admito que não fiquei muito entusiasmado com os desenhos, e gosto muito de arte a preto e branco… O estilo de Millidge é muito realista, até demais, o que se traduz num desenho que por vezes parece excessivamente inerte. No entanto, nota-se que há uma evolução no traço de Millidge ao longo deste primeiro volume e mais para o final há melhorias notórias. Para criar o ambiente peculiar de Strangehaven Millidge recorre a diferentes técnicas, por vezes utiliza fotos, e tudo o que referente aos índios é contado através de sequências pintadas a aguarela, o que lhes dá um ar de estarem fora da realidade da aldeia. Millidge utiliza a famosa grelha de 9 vinhetas por página, que por vezes pode ser demasiado rígida, o que lhe permite introduzir no meio da narrativa vinhetas soltas ou criar sequências surrealistas (o pesadelo de Alex com a rapariga é dos meus momentos favoritos).
Strangehaven - Na Arcádia é um excelente início para a nova linha Riscos da Devir (no entanto não percebo porque é que não incluíram as capas originais no livro e depois oferecem folhetos à parte com as mesmas…). Gostei deste início intrigante e espero ansiosamente pela continuação da série.