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A Vida Numa Colher [beterraba]

CapaAutor: Miguel Rocha
Editora: Polvo

É pena não haver sinais de vida das Edições Polvo há algum tempo pois a maioria do seu catálogo é composto por pérolas como esta. E justamente, A Vida Numa Colher foi galardoado, na edição de 2004 do FIBDA, com os prémios de Melhor Álbum Português e Melhor Desenho de Autor Português. Este álbum é a prova viva que o dinheiro dos contribuintes pode ser muito bem empregue em bolsas de criação literária.
Como em outros álbuns de Miguel Rocha a história desenrola-se longe dos centros urbanos e em meados do século XX. Algures, na vasta planície alentejana, Oligário herdou um terreno baldio, onde decide erguer o seu império. E é com terra e pedras que Oligário constrói a primeira parte da sua casa para que se possa finalmente casar com a rapariga que queria e engravidou. A vida dos recém-casados não é fácil, no vasto terreno de Oligário nada cresce, nem as beterrabas que tanto se empenha em cultivar. No entanto, as privações até nem lhe são difíceis de suportar enquanto espera que o seu rapaz nasça e as primeiras beterrabas vão dando sinais de vida. Mas a biologia tende sempre a contrariar os desígnios dos homens e Oligário não terá a felicidade de ser pai de nenhum rapaz, embora tenha muitas filhas enquanto tenta ter um menino. À medida que só vê meninas nascer vai ficando cada vez mais amargo e proíbe a entrada de pessoas na sua propriedade. Com a cabeça cheia de ideias magnificentes, Oligário acaba por construir imensos edifícios grandiosos, todos feitos de terra. É neste ambiente que crescem as suas, raramente vendo outros seres humanos, o que as vai levar a ter um comportamento bizarro e a preencher os edifícios de inúmeras pinturas africanas.
Este conto alucinado, que segue a vida de Oligário, poderia ser uma história tipicamente alentejana, de uma família pobre durante o Salazarismo, se não fossem os elementos introduzidos por Rocha que dão um toque surrealista à narrativa. O autor acaba por demonstrar o estado em que se encontravam as zonas do interior do país, e as dificuldades que aí se passavam, mas de uma forma subtil pois isso acaba por fazer parte da caracterização da história em si. Além disso, esta história acaba por ser uma reflexão sobre o isolamento social vivido na época e dos efeitos que isso teve na educação das crianças. As filhas de Oligário crescem isoladas do resto do mundo, passando várias carências, quer a nível afectivo, quer a nível físico, e isso acaba por se reflectir na relação disfuncional que mantêm com o pai e com o resto do mundo. As raparigas acabam por pintar o interior das propriedades do pai com motivos africanos e chegam a inventar a sua própria língua.
Não querendo tirar qualquer mérito à narrativa, foram os desenhos a pastel de Rocha que me deixaram verdadeiramente maravilhado. As cores quentes lembram inevitavelmente o Alentejo e as suas intermináveis planícies; as feições pouco inteligíveis conferem algo de misterioso a esta história singular. São também exemplares os momentos em que Rocha utiliza simplesmente o desenho para avançar na narrativa, algo que me parece lógico em BD mas que não é assim tão comum nos dias que correm. Mesmo que não gostem da história esta BD vale pela arte.
Gostei muito deste álbum, fiquei maravilhado com a arte que preenche as páginas e não consegui parar de ler. Sem dúvida uma obra-prima da BD nacional. Recomenda-se!

P.S: Como podem ver em baixo, o meu exemplar de A Vida Numa Colher foi autografado pelo Miguel Rocha aquando do FIBDA 2004.
Autografo